Personalidades múltiplas: Eu, eles e os outros?

Vários nomes, várias idades, até mesmo géneros diferentes mas um único corpo. Apesar de raro, o transtorno dissociativo de personalidade não é apenas argumento para a ficção: as suas consequências são bem reais.

E se de manhã, ao entrar no carro, desse conta de que o rádio não estava na estação habitual ou os bancos e os espelhos retrovisores não se encontravam na posição em que os deixou ou, então, no lugar onde devia estar o seu carro familiar encontrava um topo de gama? Pode parecer a cena de um filme, mas não é. O assunto é sério e, na verdade, esta pode ser a realidade de quem vive com a perturbação de dissociativa de identidade (PID), anteriormente designada de personalidades múltiplas.

perturbação de dissociativa de identidade

Alvo de fascínio e interesse – são inúmeros os livros, filmes e séries que abordam o tema – mas também de muita polémica, a perturbação dissociativa de identidade pode ser definida como a existência de duas ou mais personalidades dentro de uma só pessoa. Isto significa que estas pessoas apresentam em contextos específicos identidades ou personalidades distintas que as controlam totalmente. Cada uma destas identidades, também conhecidas como alteres ou alter-egos, possui um comportamento específico, ideias próprias e sentimentos.

No entanto, ao contrário de outras perturbações dissociativas, este é um diagnóstico raro e muito controverso. O problema só foi reconhecido pela Associação Americana de Psiquiatria em 1980, não existindo estimativa oficial do número de portadores, e, ainda hoje, vários especialistas não acreditam que esta doença exista ou que seja genuína.

Emanuel Santos, psiquiatra, confessa que na sua prática clínica nunca se deparou com um caso deste género, nem mesmo os vários colegas psiquiatras com que contactou. Como nos conta, “existem poucos casos descritos mundialmente e, mesmo assim, questionáveis”. Isto porque há quem defenda que, por um lado, não existem evidências empíricas que deem suporte a este diagnóstico, e, por outro, que essas alterações de comportamento poderiam ser facilmente fingidas, simuladas ou enquadradas noutras doenças mentais como as personalidades borderline.

Esta questão da simulação coloca-se “principalmente quando o diagnóstico é evocado em contexto de perícia médico-legal alegando inimputabilidade para atos criminosos ou outras situações em que a responsabilidade do indivíduo está em causa”, explica o psiquiatra.

De qualquer forma, e deixando para trás as controvérsias, o facto é que, apesar de serem poucos os casos que se enquadram nos critérios de diagnóstico desta perturbação, há situações reportadas há séculos.

Um mecanismo de defesa!

Um dos fatores associados ao desencadeamento do processo de dissociação da mente é, essencialmente, emocional. Os especialistas defendem que esta perturbação ocorre quando a pessoa sofre algum sofre algum trauma, na maioria das vezes durante a infância, e quando não consegue lidar com o que aconteceu, tende a proteger-se através da criação de outras identidades para que estas a ajudem a lidar com essa situação.

De acordo com Emanuel Santos, “os sintomas dissociativos em muitas pessoas podem funcionar como mecanismos de defesa psicológicos que protegem o Ego do ponto de vista emocional de experiências que gerariam uma dor mental intolerável desligando o indivíduo dessa mesma realidade dolorosa”. Nesses casos, aqueles de reconhecem a existência da doença, acreditam que, com o passar do tempo, as pessoas deslocam esses mecanismos dissociativos não só para as situações consideradas traumáticas mas para todas aquelas que no dia-a-dia causam uma desregulação emocional.

O abuso sexual na infância é uma das causas frequentemente mais apontadas, mas existem outras que podem contribuir para o aparecimento do problema, nomeadamente a ocorrência de agressões e abusos físicos ou psicológicos. Como o psiquiatra refere, desconhece-se a causa exata que origina a perturbação “mas, a existir, será multifatorial como nas outras doenças mentais, ou seja, uma interação de genes e ambiente”.

É muito difícil de diagnosticar esta doença, já que não existe nenhum sintoma ou sinal específico que a caracterize, além de que esta ainda é uma entidade clínica cuja existência é colocada em causa. Apesar disso, como Emanuel Santos explica, “advoga-se que para se fazer o diagnóstico, o psiquiatra deverá assistir na consulta à mudança de um alter-ego para outro e não apenas fazer o diagnóstico pelo relato do próprio e de terceiros”.

 

Não uma, não duas, mas várias personalidades

As manifestações desta doença, ao contrário de outras patologias, fazem-se sentir principalmente na interação com as pessoas mais próximas, afetando a estabilidade das suas relações familiares e profissionais. Por vezes, uma só pessoa chega a ter dentro da sua mente dezenas de alteres. A história de cada um deles é única, assim como a sua personalidade. Cada identidade é completa, tem o seu próprio nome, autoimagem, memórias, gostos e comportamento.

Geralmente, as personalidades são bastante independentes umas das outras, sendo possível terem idades e sexos diferentes. Por exemplo, uma mulher adulta pode ter um alter de criança, como também um alter do sexo masculino ou com opções sexuais diferentes das suas. De acordo com o psiquiatra, “o doente em diferentes períodos vai-se apresentar aos outros como se fosse uma pessoa completamente diferente, podendo haver mudança do tom de voz e até apresentar-se com roupas do sexo oposto se o alter-ego for de género diferente”.

Durante os períodos em que uma personalidade assume o controlo, os outros ficam em amnésia parcial. Geralmente, há um alter-ego dominante (ou primário) e pode existir conhecimento entre as várias identidades mas, por norma, a pessoa não tem consciência das outras personalidades e não se recorda dos comportamentos e vivências que os seus alter-egos experienciaram. Ou seja, o portador da doença não tem qualquer controlo sobre os seus diversos “eus”.

Para além destas características, Emanuel Santos diz-nos também que estas pessoas podem apresentar ainda “sintomas que se enquadram numa perturbação da personalidade borderline, como ideação suicida, tentativas de suicídio, comportamentos de automutilação, relacionamentos interpessoais instáveis com grande conflituosidade, níveis elevados de impulsividade, baixa tolerância à frustração e rejeição com manifestações de raiva, heteroagressividade com passagem ao ato e, também com alguma frequência sintomas psicóticos como alucinações e delírios persecutórios”.

Uma vez que as diferentes identidades se manifestam consoante a sua reação ao ambiente e às pessoas que as rodeiam, a mudança entre elas pode ocorrer a qualquer momento e em qualquer situação do dia-a-dia. Assim sendo, de acordo com a literatura científica existente, parte-se do princípio que as mudanças de alter-egos acontecem em resposta a períodos de maior stress – situações vivenciais difíceis e vistas como ameaçadoras – e que a personalidade a assumir o controlo será aquela que se considera mais competente para lidar com essa situação ou que irá proporcionar uma experiência menos dolorosa.

Aceitar todas as identidades como parte de si

Atualmente, o tratamento disponível para esta perturbação passa pela combinação da psicoterapia e da administração de psicofármacos. Contudo, nos casos considerados mais graves, há quem defenda a electroconvulsivoterapia – vulgarmente chamada de terapia de electrochoques – como uma opção a considerar.

O que se pretende com o tratamento é, segundo Emanuel Santos, ajudar o doente “a desenvolver mecanismos de coping mais adequados para lidar com as situações difíceis, ter consciência do tipo de emoções que experimenta e saber regulá-las em vez de alternar entre alter egos, ajudá-lo a corrigir pensamentos distorcidos acerca do self e a forma como se perceciona a si e às outras pessoas com quem se relaciona”, entre outros objetivos. Com o tempo, a pessoa deverá “aceitar que todos os pensamentos, memórias, comportamentos, sentimentos, receios e crenças fazem parte de si, do mesmo self“, acrescenta.

Alguém que conheça apenas uma das personalidades provavelmente não notará nada de anormal na pessoa, mas o problema pode afetar profundamente as relações familiares e profissionais destes doentes. Em suma, são personalidades totalmente distintas e autónomas, mas que fazem parte da mente de um só indivíduo. É caso para “roubar” as palavras ao poeta norte-americano, Walt Whitman, e dizer “há multidões dentro de mim”.

 

Uma mulher dividida… em muitos!

Se, por vezes, é difícil vivermos apenas com nós próprios, como será viver com dezenas de “nós”? Já imaginou? Kim Noble, uma artista plástica inglesa de 53 anos, sabe bem o que isso é. Costuma acordar como Patrícia – a sua personalidade dominante –, mas a qualquer momento pode transformar-se em Ken, um jovem homossexual; em Salomé, uma católica fervorosa; em Judy, uma adolescente anorética; em Abi, uma solteira que vive à procura do amor, ou em qualquer outro dos seus alteres. Kim Noble foi diagnosticada com perturbação de dissociativa de identidade e, no total, tem cerca de 20 personalidades a viver dentro de si.

As personalidades que se encontram dentro do seu corpo não se conhecem, no entanto, com o passar do tempo, Kim passou a conhecer os seus alteres pelo estilo artístico de cada um. Para comunicar com os diferentes alter-egos, os médicos recomendaram à artista plástica a criação de contas de e-mail para cada um deles. Por isso, todos eles têm um e-mail diferente, uma password que só eles sabem e é através dessas contas que são marcadas as consultas.

Kim tem uma filha adolescente mas não se recorda da gravidez, nem de ter dado à luz. A filha foi-lhe retirada logo após o nascimento e o trauma da separação fez Kim criar uma personalidade só para armazenar e bloquear a recordação do momento. No entanto, seis meses depois, a criança foi devolvida à mãe já que nenhuma das suas personalidades era uma ameaça ao bebé.

Segundo os médicos que acompanham a artista plástica, a razão para as constantes mudanças de personalidade reside no seu cérebro, que tenta compartimentar os acontecimentos negativos da sua memória.

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